segunda-feira, dezembro 11, 2006

Nas manchas de jornal

Tiago Cordeiro (*)

A primeira vítima foi a televisão. Plana e com antena parabólica, foi vendida ao vizinho, ou melhor, trocada por uma coleção de livros raros: "Os Filósofos". Em seguida, se desfez do celular. "Oferecemos um plano especial se o senhor continuar..." muitos "nãos" e a indisfarçável certeza que a entrada do inferno passa por algum telefonema de operador de telemarketing, conseguiu cancelar as duas linhas: a móvel e a imóvel. Costume e necessidade.

Toninho (óbvio apelido de Antônio) decidira se livrar de tudo o que fosse tecnologia de telecomunicações. Não seria mais encontrado em qualquer lugar para conversar por telefone, teriam que lhe visitar. Não trocaria mais uma boa leitura pela TV. O mais difícil foi livrar-se do computador. Trocou-o por um crédito gigante de cópias coloridas e em preto & branco na loja em que o vizinho era dono e mais uma máquina de escrever digital. Saudável exceção justificada pelo paradoxo: a máquina era muito inferior a um computador e muito superior a uma máquina de escrever convencional.

O aparelho exibia em um pequeno visor o texto que, ao ser confirmado como correto, era impresso. Perfeito para as aspirações literárias do escrivão que decidira não participar mais do mundo globalizado digitalmente.

"Não quero mais isso para mim".

Há meses pensara a respeito. A decisão foi sacramentada quando chegou em casa mais cedo para descansar de um dia estressante e logo tocou o telefone de casa. Era um amigo que lhe ocupou por horas sem que pudesse dispensá-lo. Ainda conseguiu desligar a tempo de dormir antes da novela, mas seu celular tocou e enquanto jogava conversa fora com um colega jornalista assistia TV. Ao desligar, teve que ver e ouvir a série que - até então - assistia no mudo. Sem sono no fim da novela, foi ao computador e no dia seguinte estava mais cansado do que nos outros dias. "Informação é vício", manter-se informado em todas as séries, jornais e canais, em contato com todos os amigos e parentes era uma forma irresistível de existir. Pensava que quanto mais se inteirava mais completo era. Porém pedira arrego, água, trégua e afins. Não queria mais ser tão completamente informado em tempo real. Dali para frente conviveria apenas com o jornal, seus livros e algumas crônicas e contos para a tão sonhada publicação de um livro. Romance era coisa de outra época.

Diário de um órfão

Sou órfão sim. Órfão de me manter tão por dentro de tudo. Parei no tempo mas parei sem vergonha. Pelo menos acompanho o mundo real a passos regulares. Na música parei há 40 anos, duas overdoses e uma bala certeira. Cinema eu abri mão a não ser em festivais de preto & branco, talvez possa reconsiderar.

Talvez encontre nas manchas do jornal lido, no cansaço da leitura e no tédio e falta de vontade de escrever o que todos procuram. O ócio criativo pode ser o ócio do nosso auto-conhecimento.

Sinto falta das manchas de jornais.



(*) Publicado originalmente no Comunique-se